domingo, 26 de outubro de 2008

A SINA DE MARCOS - parte 01

Onze horas da manhã, horário de Brasília. Aquela sempre era a pior hora do dia para Marcos: a hora de ir para o trabalho. Ele entrava no chuveiro e enrolava o máximo possível, mas tinha a consciência de que, às onze e meia, teria necessariamente que estar na parada, para não perder o ônibus. Não era o trabalho em si que o incomodava, muito pelo contrário. Era a parte do dia em que tinha contato humano, algo que ele apreciava muito, desde que fosse em um ambiente controlado, em doses moderadas, envolvendo distâncias civilizadas, como acontecia no ambiente profissional. O que realmente o incomodava é que, naquela hora do dia, precisava se vestir. Não tinha opção senão colocar roupas, e sentir aquela terrivelmente incômoda sensação de atrito entre o tecido e a sua pele. Aquela era a pior parte, sair da confortável nudez para o horrível processo de colocação das roupas em si. A calça não incomodava tanto...mas a blusa, essa sim era um verdadeiro suplício, especialmente em cima dos ombros, quando andava e mexia os braços, a sensação era quase insuportável. As meias eram o problema mais sério. Se as comprasse largas, como as roupas, elas incomodavam muito na locomoção. Se não as usasse, seus pés tinham contato direto com o interior dos tênis, ainda mais ásperos e incômodos. Então, era obrigado a suportá-las justas, em constante atrito com todos os pontos de seus pés e com as canelas.

Nunca sequer havia cogitado a possibilidade de usar cuecas, isso, sim, seria verdadeiramente insuportável. Sentia-se como Darth Vader, vestindo uma horrível armadura por cima das queimaduras. Mas não tinha jeito. Se não trabalhasse, teria que voltar a morar com sua mãe, que lhe obrigava a baixar o volume do computador de madrugada, não o deixava comer pizza todo dia, e o pior de tudo, lhe obrigava a usar roupas dentro de casa.

Já na adolescência, utilizando uniformes escolares, notou que a chamada “malha fria” não era tão incômoda como os demais tecidos, principalmente se utilizada em roupas largas. Isso o levou à adoção de um visual esportivo constante, como se sempre estivesse fazendo cooper em um dia de outono: calça estilo moleton, camiseta de manga curta, tudo em geral na cor cinza, com tênis de corrida. Com aquelas roupas, conseguia se acostumar após cerca de quinze minutos de utilização. Disciplinou-se para resistir à vontade de tirá-las, e, àquela altura do campeonato, em que tinha vinte e quatro anos de idade, já era mais ou menos automático esse controle. Ele quase conseguia esquecer da sensação de atrito, daquele incômodo maldito, do terrível tecido.

Naquele momento, estava no ônibus para o trabalho. Como fazia quase todos os dias, bendisse o cargo público que ocupava, que lhe permitia trabalhar em uma repartição onde seu visual era relativamente tolerado. Era concursado e seria difícil puni-lo por tal razão. Para evitar maiores problemas, dedicava-se bastante ao serviço, o que acabou fazendo sua chefia relevar um pouco aquele visual de moleque em dia de aula de educação física, que o caracterizava, e valorizá-lo por seu desempenho. Claro que ele jamais havia explicado a verdadeira razão pela qual se vestia daquela forma, sabia que as pessoas teriam dificuldade para entender. Por acaso, um colega mais engraçadinho havia lhe providenciado uma desculpa conveniente logo na primeira semana de serviço:

- E esse visual de campeão aí, Marcos? Por acaso vai para a Olimpíada de Pequim daqui a três anos? Defender a nossa bandeira, bróder? Então traz uma cabeça de tibetano engarrafada no saquê pra mim!

Marcos pensou rápido:

- Cara, vou ficar devendo esse teu brinde macabro... o máximo que faço é voltar correndo pra casa todo dia, por isso essas roupas. Economizo o busão e ainda faço exercício, sacou?

- Porra, velho...puta idéia boa. Faz bem, bicho, faz muito bem mesmo. Manda ver, campeão!

Até então Marcos tinha mesmo o costume de fazer cooper, mas cerca de duas, no máximo três vezes por semana, perto de casa, de acordo com o seu humor para vestir os shorts, meias e tênis necessários. Nada demais, só mesmo para queimar a caloria da pizza. Mas aquela idéia era mesmo muito boa! Ele arranjaria uma desculpa eterna para seu visual, economizaria ônibus, faria um exercício mais puxado e de quebra ainda se livraria dos shorts periódicos! No mesmo dia da conversa, experimentou voltar correndo para casa. Parou no meio do caminho e terminou o percurso andando bem devagar, aquilo cansava! Com o tempo, porém, pegou o ritmo, e naquele dia, depois de três anos em tal rotina, o percurso já havia se tornado familiar e ele o percorria sem pausas. Periodicamente, estabelecia novas metas de tempo. Passou a aproveitar o pique e, chegando do trabalho, após o cooper, aproveitava e fazia umas barras, paralelas e abdominais nos aparelhos improvisados que os malas da quadra onde morava haviam construído com cimento, tijolos e barras de ferro. Após alguns anos, havia se acostumado com tal rotina, e se sentia muito saudável com aquilo tudo.

Ele não era o único que o achava bastante “saudável”. A mulherada da seção se ouriçava mais a cada dia, e os comentários baixinhos na copa se apertavam entre a garrafa térmica e o microondas. Marcos, porém, parecia não dar muita bola para ninguém, nem do lado de dentro do balcão, nem do lado de fora. Na seção, nenhuma das moças tinha ainda se arriscado a uma abordagem direta, como um convite direto para sair, ou elogios rasgados ao seu físico. Apenas transbordavam em simpatia e mimos para o lado do rapaz, como lanchinhos caseiros e suquinhos de laranja, ao que ele respondia com um simples agradecimento. Não era, porém, por pura timidez que ninguém ainda o havia abordado. Todas já sabiam que o moço estava na mira da chefe da repartição, e não ousavam avançar o sinal vermelho, pelo menos não até terem certeza que sua superior já houvesse tido a primazia de experimentar o material. Além disso, todas tinham a consciência que a chefe, além de sê-lo, era a grande gata da seção, sem concorrência à altura.

Olga tinha 38 anos e cerca de um metro e oitenta de altura, que se tornavam mais de um e noventa acima de seus indefectíveis saltos altos. Seus olhos eram de um profundo azul, e inquiridores, e marcavam seu belo rosto eslavo, que indicavam sua ascendência ucraniana. Seu corpo era perfeito, esculpido em vinte anos de absoluta disciplina em academias de ginástica. Após o desmame de sua segunda filha, a mais nova, não havia pensado duas vezes e implantou próteses de silicone discretas, que não aumentaram seus seios, pois que sempre haviam sido grandes, mas garantiram sua solidez por toda a eternidade. Por fim, emoldurava esse incrível conjunto com caríssimas roupas de trabalho, ternos e tailleurs com o desenho perfeito entre a sensualidade e a sobriedade, mostrando todo o conjunto escultural daquela senhora, mas sem sombra de vulgaridade.

Apesar de que seria bem mais fácil proceder de outra forma, Olga optou por ascender no órgão onde trabalhava por meio de seriedade e competência no trabalho, e a função que ocupava atualmente era a máxima permitida por seu cargo. Sempre soube driblar o eventual assédio com profissionalismo e bom humor, e após oito anos de casa, já era famosa por ser absolutamente impegável. Era casada desde o primeiro dia no órgão, e todos os que tentaram algo receberam dispensas simpáticas e discretas, alguns insistentes tiveram que lidar com foras incisivos, e uma autoridade um pouco mais abusada teve três dedos da mão quebrados após uma apalpada indevida. Na ocasião, ameaçou-a, mas Olga avisou serenamente que, em caso de qualquer retaliação, a esposa dele ficaria sabendo, o que resolveu o problema definitivamente.

Um dia, três anos antes, havia recebido aquele rapazote recém-admitido para trabalhar na repartição. Como todo novato, decidiu colocá-lo para sofrer um pouco no balcão de atendimento, bem mais puxado e cansativo que os serviços internos. Afinal, ele tinha um visual bastante desleixado, e se sua personalidade a isso correspondesse, precisaria ser adequadamente disciplinado. Logo ele começaria a errar, e dessa forma ela estaria mais à vontade para exigir-lhe, dentre as várias prerrogativas de trabalho, que adequasse seu vestuário. Qual não foi sua surpresa, porém: o rapaz aprendeu todo o serviço de balcão em menos de uma semana, era prestativo e educado com o público, usava de um português corretíssimo, e ainda por cima ajudava os colegas com outros serviços quando o balcão estava vazio. E, além de tudo, era bem bonitinho.

Olga buscou afastar esse pensamento de sua cabeça, afinal, em um casamento de vinte anos nunca havia traído seu marido, embora oportunidades não faltassem. Ele viajava muito a serviço, mas sempre compensava na volta, a satisfazia de forma plena, e no final das contas, ela era feliz no casamento. Ou pelo menos, já havia sido. Nos últimos dois anos, as viagens se tornaram demasiado longas, e ele sempre chegava cansado e desanimado. Ela pensava que talvez a idade estivesse cobrando seu preço dos dois, e redobrava a malhação e os cuidados estéticos com pele e cabelo. Mas nada adiantava, o marido, quando muito, comparecia de forma burocrática às suas obrigações conjugais. E mais três anos se passaram, o marido então completava cinco anos de relativa apatia sexual. Ele era um homem muito fechado e tradicionalista, e Olga não se sentia à vontade para puxar uma conversa sobre o assunto. Ela tinha uma vida perfeita, uma família maravilhosa, dois filhos inteligentes e saudáveis, e não seria justo estragar tudo com suas taras.

Mas o novo rapaz, após três anos de trabalho, em vez de se tornar mais feio com a passagem do tempo, se tornou mais atraente. E, ao contrário de praticamente todos os homens com quem ela já havia trabalhado, nunca havia demonstrado qualquer interesse por ela. Justo ela, que até de um cabelereiro gay já havia ouvido “olha, meu negócio é homem, mas você...você eu encarava! Você é linda”. Por outro lado, ela não teria coragem de fazer com Marcos aquilo que ela sempre detestou ser alvo, abordá-lo, assediá-lo, mas não conseguia resistir a passar cada vez mais tempo olhando para ele. No começo, ela viu que os colegas estavam notando e tentou se segurar, mas com o tempo, desistiu de resistir. Ela se deliciava ao ver o rapaz gesticulando amavelmente enquanto atendia as pessoas no balcão, ou retesava os músculos carregando pilhas de documentos, sempre com seu ar jovem e sereno. Todos notavam a admiração – menos ele. E, a contragosto, ela percebeu que ao mesmo tempo em que aquilo a incomodava profundamente, ela se sentia como quando era uma adolescente magrela no primeiro grau, apaixonada e insegura. Marcos a fez se sentir viva novamente, ela percebeu que há anos havia esquecido do que se tratavam as delícias da incerteza e da expectativa. E então, absolutamente, não sabia, pela primeira vez em muitos anos, o que deveria fazer.

Fim da parte 01

Veja também a primeira história de Marcos