quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A SINA DE MARCOS - parte 02

- Não.

- Como não?!!!

- Não estou interessado, muito obrigado.

Nunca na vida Olga tinha ouvido um não naquele tipo de situação. Muito pelo contrário, muitos já haviam ajoelhado aos seus pés, dispostos a matar a mãe, implorando pelo que Olga ofereceu a Marcos espontaneamente, e ele recusou sem titubear. Justo Olga, que sempre havia sido extremamente seletiva nesse sentido, e não tinha medo de dizer não, agora o ouvia, sonoro e claro. Ainda bem que ela o havia levado para ter com ele aquela conversa a sós, embora nunca tivesse cogitado a possibilidade da recusa, era algo que deveria ficar entre eles por enquanto. Mas, quando ela esperava um grande sorriso acompanhado não de um simples sim, mas de um “é claro”, “é lógico”, ou mesmo um “demorou”, ela havia recebido uma inédita recusa de seu subordinado.

Marcos recusou uma função de confiança, que quase dobraria seu salário.

- Mas por que isso, Marcos? Você é competente, rápido e leal. Por que não?

- Não topo a exigência.

- Exigência, que exigência? É para trabalhar o mesmo horário, fazendo praticamente as mesmas coisas!

- A de mudar meu vestuário, não estou a fim. Estou bem assim.

- Marcos, você vai rasgar dinheiro a troco de não usar uma simples roupa social? Nem gravata precisa, eu só não posso ter alguém na posição em que quero te pôr, vestido como um aluno de educação física no segundo grau!

- Pois é. Não topo.

- Cara, acho que não é pedir muito, é uma exigência razoável! Quem ocupa essa função hoje é o Herbert, puta servidor bom, dedicado e leal. Como ele está se aposentando, queria passar essa função para o único cara que trabalha tão bem quanto ele aqui, que é você. Não é pedir muito uma roupinha social.

- Chefe, você provavelmente tem razão, não é pedir muito não. Mas eu simplesmente não topo. Eu sou quem sou, tenho minha própria rotina fora daqui, e mudar minha vestimenta me atrapalharia bastante.

- Mas...eu nem sei o que dizer, estou habituada com a posição contrária, as pessoas implorando e eu negando. Nunca me vi nessa situação, não é nem um pouco convencional, eu vou te dizer, viu, Marcos...

- É, Olga, vai ver eu também não seja um cara muito convencional. Liga não, é só meu jeito...

Muito tempo depois, Olga lembraria que foi exatamente naquele momento. Marcos disse aquela exata última frase naquele tom doce e conciliador que usava mesmo com os usuários mais encrenqueiros no balcão, ou explicando pela décima vez o mesmo procedimento para um colega mais obtuso. Aquele sorriso sereno com o qual aceitava os pequenos agrados que as colegas de seção sempre lhe levavam. Aquela calma de quem sabe quem é, mesmo quando todo o mundo ao redor já perdeu toda a noção de identidade ou honra. É o desprendimento que Olga viu, com treze anos de idade, no primeiro menino por quem se apaixonou, naquele rapaz cabeludo, espinhento e cheirando a suor, sempre com um violão a tiracolo e meia dúzia de canções do Raul Seixas em um limitado repertório. O rapaz que não ligava nem para opinião alheia, nem para as roupas de marca que tanto a fascinavam, nem para a cultura do banho diário, ou para qualquer dessas imposições convencionais da sociedade.

Ali estava na frente dela, a pessoa mais bela e doce que já havia conhecido, explicando candidamente que não trocaria sua própria identidade por dinheiro. As pessoas com quem ela estava acostumada a conviver, bem sabia, trocariam muito mais por muito menos. E foi naquele dia que ela se apaixonou definitiva e perdidamente por Marcos. Mas tudo o que conseguiu dizer foi:

- Eeeeerr...bem, está certo então. Não quer, não quer. Ah, mais um lance: vamos fazer uma festinha de despedida para o Herbert, só um lanchinho aqui na seção, mesmo. Vai participar?

- É claro. Eu sempre participo, né? Quanto dá para cada um?

- Ainda não fiz a conta, mas não vai ser caro, garanto.

- Beleza então, mais alguma coisa?

Olga segurou na garganta o “eu te amo” e disse, quase que roboticamente, que por enquanto era só.

Marcos saiu da sala bastante puto consigo mesmo. Primeiro, por ter que abrir mão de uma boa grana, com aquele salário poderia fazer upgrades completos em seu micro de seis em seis meses, em vez de anualmente, e também poderia comprar muito mais joguinhos. Segundo, por dizer não para a sua chefe. A filosofia dele sempre foi fazer tudo o que lhe era mandado, de forma a evitar qualquer tipo de problema ou encheção de saco. Agora, havia aberto um precedente, e torcia que ela não passasse a pegar no seu pé por causa disso.

Mas não tinha opção. Apenas em imaginar o roçar da microfibra em seus antebraços, ele já tremia. Mas pensou resolutamente que, a partir daquele momento, faria qualquer coisa que a chefe pedisse, para compensar aquele “não”. Desde que, naturalmente, não envolvesse usar roupas diferentes daquelas que já lhe faziam mal. Ele já havia tentado de todas as formas, até em psicólogo havia ido quando jovem, para tentar superar sua ojeriza. Nada deu certo, e Marcos chegou à conclusão de que seu problema era, com certeza, de natureza física, e nada daria jeito naquilo. Aceitar a função lhe traria muito, muito sofrimento. Seria um dinheiro maldito, horrível, horrível, horrível... só de pensar nisso Marcos começou a suar.

Quando saíram da sala fechada, Olga correu direto para o banheiro. Marcos alisou os cabelos para remover o suor e foi direto para o balcão. Os colegas se entreolharam, soltaram todos um meio-sorriso e um “hmmmmmmmmmmmmmmmmmm!!!” praticamente uníssono. Um colega mais ousado, Yuri, aproveitou a ausência da chefe e disse para Marcos sem rodeios, na frente de todos:

- Aê, Marcão, se deu bem, hein, meu velho?!!!

As chamas da esperança se acenderam nos corações de todas as moças da sessão, até que ele respondeu:

- Nem, cara, eu não topei.

Todos fizeram aquela típica cara de espanto, ao mesmo tempo, como em uma comédia antiga. Yuri disse quase gritando:

- Não topou, tá maluco porra? Sabe quantos aqui tiveram um oportunidade dessas? Ó caralho alado!

- Nem, cara. Eu teria que trocar minhas roupas, não estava nem a fim. Mas não sou o único cara bom daqui, vou recomendar para ela que passe a bola pra ti, o que acha?

- [espantado] T-t-tá, cara, tudo bem, mas vai na calma, tá? Não quero rodar na mão da chefe, vai que ela não gosta da idéia e me pune por dar uma de abusado?

- [rindo] Acho que não tem nada a ver, cara, mas tudo bem. Não sabia que você era tão bundão, porra!

A chefe voltou para a sala, com um ar cabisbaixo e desnorteado. Os homens, com exceção do sempre sereno Marcos, olharam com pena. As mulheres, por sua vez, acumularam um estranho sentimento, distorcido e infundado, um certo senso de vingança misturado com despeito, para lá de satisfeito.