segunda-feira, 16 de junho de 2008

Meireles é muitos - Arco 1- Contracultura, grana e poder

Parte 3 - Paraíso Doméstico


- Seu moleque maluco e filho da puta!!! Você destruiu meu carro!!!

- Porra, velho... gastei a maior grana grana pra rebocar a bagaça da caranga pra cá... se você tivesse só me mandado a papelada que eu pedi, pô, eu já tinha vendido a carcaça. Tu até podia ter ficado lá no Rio, que em vez de gastar dinheiro, a gente tinha era ganho...tu não me ouve...

- Te dar procuração, seu safado? Procuraçããão!!! – o velho começou a ficar vermelho – Seu monte de merda!!! Cabeludo filho da puta!!! Eu juntei grana três anos para comprar aquele carro, como você pretende ganhar ESSA grana, hein... seu viadinho!!!

- Ah... eu que sou o viado aqui? Aliás, como foi a viagem lá no Rio, já que o senhor tocou no assunto?

- Não muda de assunto, seu bosta! Tem um monte de ferro retorcido coberto com uma lona preta bem embaixo da minha janela!!! E eu estava viajando! Caralho, vou ser motivo de chacota pelo resto da vida! As velhas do prédio vão rir de mim no elevador!

- Ah, eu acho que não, velhão...pelo menos não por isso, acidentes acontecem, né? Agora, se elas soubessem o tipo de creme dental que o senhor usava na caserna...aí não dá para garantir nada, né?

O velho começou a tremer todo. Ele ainda daria conta de dar uma surra naquele moleque abusado. Apesar do rapaz ser maior e mais jovem, ele era um sujeito saudável, e tinha treinamento. Seu treinamento. Não gostava nem de lembrar da época do seu treinamento. Como doía, como doía... sentiu uma lágrima escorrer nos olhos. Coisas horríveis aconteceram durante seu treinamento. Agora, ali estava aquele filhinho de uma puta na sua frente, olhando bem no fundo dos seus olhos, ameaçando espalhar para o mundo aquilo que até um mês atrás apenas ele sabia.

Bem, não apenas ele, todo mundo que tenha passado duas noites, ao menos, naquele alojamento, entre 1942 e 1945, sabia o que acontecera, mas ninguém nunca tinha espalhado. Bendito decoro militar. Eles podiam até ter destruído seu cu, mas nunca se disse palavra sobre isso fora do quartel, e depois que saiu da escola de cadetes, ninguém mais tocou no assunto. Alguns dos seus vilipendiadores até mesmo trabalharam com ele durante a carreira. Nem uma única palavra. Agora eles eram os paladinos da Revolução, e tinham o grave dever de erradicar o comunismo em nosso solo, manter o povo na linha e conduzir o país para seu grandioso destino. E ele trabalhara com afinco para isso. Não era certo ser ridicularizado, após ter dado tudo pela família e pela pátria. Mas o mundo não é justo, é? Às vezes é necessário recuar.

- [resignado] Você tava apostando corrida, né?

- É.

- [mais controlado] Eu também apostei umas corridas no meu tempo, embora nunca depois de beber. Sempre terminei com o carro do mesmo jeito, acho que a gente dá valor para o que compra com o suor do próprio rosto. E eu tinha carta, né? Sabia dirigir de verdade. Você me deu um puta prejuízo, moleque. Vou vender a carcaça, como você sugeriu, completar a grana e te dar um fusca assim que você tirar a carteira. Se você acabar com ele também, vai ficar à pé de vez.

- [espantado] Mas... e você?

- Eu me viro. Sou um oficial das forças armadas. Mesmo reformado, não posso dirigir uma porra de besouro. Prefiro andar.

- Eu... tá, valeu.

Seguiu-se um silêncio bastante incômodo. O pai permaneceu de pé, olhando fixamente os olhos do de Arquibaldo, que não pode suportar e baixou a cabeça. Não poderia imaginar o pai dele andando de ônibus. O velho sempre havia sido tão orgulhoso! Lembrou que ele sempre lhe deu todas as caronas que pediu, se não estivesse trabalhando, com a maior boa vontade. Que o velho sempre foi durão, mas nunca tinha batido nele de verdade, só meia dúzia de palmadas quando pequeno. Que sempre foi meio fechadão e grosso, mas sempre deu tudo que ele pediu, brinquedos, roupas, grana para sair.

Bateu uma vergonha imensa, ele tinha que mudar de assunto, cortar aquele clima. Se pelo menos o pai desse as costas e saísse, como de hábito! Mas em vez disso, ficou ali de pé, encarando o filho, segurando a raiva, vermelho, com uma veia saltada na testa, a boca fechada, lábios retesados. Dizer alguma coisa, mudar de assunto, dizer alguma coisa...

- Ah, velhão, esqueci de te contar. Eu tô namorando.

- Namorando. Uma mulher?

- Uma menina, pai, linda ela. Uma gatinha mesmo.

- Ah, meus parabéns. Depois traga ela aqui para que eu a conheça. É de boa família?

- Eu... não sei. É lá da escola, ainda não conheci os pais dela.

- Verifique. É importante saber essas coisas.

Então, o velho Coronel Meireles, sentindo-se mais velho que nunca, virou as costas e saiu. Sentiu uma imensa falta do Tonhão, aquele rapaz moreno e musculoso que conhecera no Rio de Janeiro. Mas aquela era uma cidade grande e antiga. Brasília, ao contrário, era ainda um lugar novo, todos se conheciam, e por isso não poderia ali desfrutar dos entretenimentos heterodoxos de que dispunha, anonimamente e sob nome falso, no Rio. Só restava sair à noite, e visitar um puteiro tradicional mesmo.

Arquibaldo, por sua vez, tinha se arrependido de ter dito aquilo. Funcionou exatamente como previsto, mas ele nem pensava naquela putinha como sua namorada. Conhecer a família dela? Nem a pau, aquilo já tinha ido longe demais, três semanas inteiras com a mesma mina, hora de terminar. Ele faria aquilo no dia seguinte, chega de enrolação. Todas as mulheres do mundo tinham buceta, e ele estava só começando, estava disposto a experimentar pelo menos a metade. Lembrou então que, depois que o pai saísse, ficaria sozinho com a fogosa empregada Doris...quem precisa de namorada?

Então, foi à cozinha filar uma bóia e trocar uma idéia com a morena. O pai passou a noite toda fora, e ele, a noite toda dentro.