segunda-feira, 9 de junho de 2008

Meireles é muitos - Arco 1- Contracultura, grana e poder

Parte 01 - A festinha do barulho



Abril de 1970

Naquela noite de sexta-feira, não haveria vizinho capaz de estragar a festa. Toda a turma da escola tava lá, e mais um monte de gente que ele não conhecia. Gatinhas mil, provavelmente do primeiro e segundo ano também. Ele já tinha comido metade do terceiro e, mesmo doidão, lembraria da cara delas.A radiola nova que o velho tinha comprado era estereofônica, com capacidade de 2000 watts PMPO em cada caixa de som. Pelo menos é o que estava escrito no manual de instruções, Arquibaldo não sabia muito bem o que aquilo queria dizer, mas a barulheira era bacana demais, alta e nítida. “Eu tenho muita sorte”, pensou, “até que, para um milico reaça, o velho é gente boa”. As palavras do seu pai ainda ressoavam na sua mente doidona de erva:

[Três dias antes]

- Filho, estou indo passar um mês no Rio de Janeiro. Tenho que comem...quer dizer, me recuperar da morte súbita da tua mãe. Tu é grandinho e até dava pra te levar junto, mas você tá em aula, se fosse ia perder o ano. Mas o importante é você entender o seguinte: agora eu estou na reserva, o respeito e o medo não são os mesmos de antigamente. Não sou bobo e sei que você vai aprontar umas boas quando eu estiver fora. Sempre te falei, faz o que quiser mas respeita minhas regras, moleque. Você tá disposto a respeitar minhas regras?

- Engraçado, nunca tive escolha, velho. É a primeira vez que você pergunta.

- Moleque metido a esperto, respondão do caralho. Tu tá maior que eu, mas lá no subsolo do DOPS tanto faz tamanho, seu filho da puta.

- Calmaê, velho, esfria, tá? Vou fazer como você mandar, eu sempre faço né?

- Fui muito liberal contigo mesmo...mas foda-se, é o seguinte: primeiro, as pessoas precisam trabalhar, nada de festinha em dia de semana, ok?

- Feito.

- Feito o caralho. Como você lembrou bem, isso não é um trato, são as regras, porra.

- [engole seco] Sim, senhor.

- Melhor, porra. E também não pode festa no domingo de noite. Ao contrário de você, vagabundo, as pessoas trabalham!

- Mas eu estou estudan...

- Calaboca, seu merda! Esse ano é teu vestibular, então acho melhor você levar tudo isso muito a sério! Eu vim de baixo! Não tive essas oportunidades que você tem, de freqüentar escolinha particular de civil cheia de cocotinhas gostosas de minissaia não! Vim do interior do Amazonas! Entrei na escola de cadetes com quinze anos! Morava lá, cercado de macho! Um único dia que deixei escorregar o sabonete no vestiário, pronto, nego não perdoou! Acabei passando três anos sentando de lado e escovando os dentes com porra!

- [assustado] ...você nunca tinha me conta....

- MERDA! MERDA! MERDA! Você me tirou do sério, moleque! Perdi o controle! Porra...buááááááá...chuif...buááááááá...

- [apaziguador] Pai, você sabe que eu te amo, né? Eu sempre vou estar do seu lado, sempre vou te obedecer. Não quis virar milico porque não levo jeito, você sabe disso. Uso essas roupas coloridas porque tá na moda, as meninas gostam. Não é para te afrontar...

- [em prantos] Por que você me fez lembrar dessas coisas? Como doía, como doía...eu pedia para parar, mas eles se revezavam...buááááááá...toda noite no alojamento...foi horrível...buuuuuuuuh...

- [hipócrita] Chhhhh...pronto, passou, passou. Me dá um abraço aqui...assim, isso. Meu velhão...sabe que eu tenho o maior respeito por você, né? A maior admiração...no colégio, quando meus colegas dizem que o pai é médico, advogado, engenheiro, ou coisa do tipo, eu respondo com o peito estufado, maior orgulho: meu pai é oficial das forças armadas!

- Chuif...obrigado, filhão. Mas esqueça que viu isso, certo? Homem não chora!!!

“Chorar não, mas dar a bunda pode, né? Que coroa bicha!”, foi o que Arquibaldo pensou, mas achou melhor ficar calado. Aquele clima tava bom para arrancar uma grana a mais do velho, e também umas concessões.

- Então é isso, velho. Você vai viajar para o Rio - muito provavelmente para chupar pica, pensou – Eu acho uma boa idéia, o ar marítimo vai ser bom para afastar a melancolia da morte da mamãe.

- É isso, filho. O que eu ia te dizendo é o seguinte, na prática tu só pode se divertir por aqui no sábado à noite. Nada de drogas, hein? Sei que você não usa, mas ninguém pode garantir seus amigos, né? Pois aqui tá proibido.

- Tá.

- Outra coisa, mesmo sendo sábado à noite, você vai ter que dar uma amaciada nos vizinhos. Vai na confeitaria da esquina e encomenda umas três tortas. No dia da festa, você vai dar de presente para a dona Joaquina do 402, pra dona Ermengarda do 301 e pra Srª Ribeiro, do 502. O resto não tem a cara-de-pau de mexer comigo, só essas três são mais encrenqueiras, e eu quero evitar falatório.

- Tu vai de avião, né, velho?

- Negativo, vou de carro, por quê?

- Ah, nem faz isso, tô sabendo que a estrada tá uma barra só. Cheia de buracos e tal. Vai de avião, velhão! Deixa o carro comigo, o senhor aluga um lá.

- Pirou, moleque? Tu nem tirou carteira ainda, fez 18 mês passado! E se a polícia te pega?

- Ah, eu dou minha carteirada de filho de milico pô!

- Isso não é assim não! A polícia não vai engolir essa!

Arquibaldo já havia pego o carro escondido várias vezes, sabia que funcionava sim. Sem falar nas pelo menos dez vezes em que foi pego fumando maconha. Aquela carteirinha era salvadora, era só não matar ninguém e nada acontecia.

- Ah, qualé, velho? Você não vai estar aqui para me dar carona de madrugada! É perigoso andar na rua tão tarde. Além disso, esse negócio de ônibus é para bicha pobre que dá o cu contra a vontade! E que não quer que ninguém fique sabendo!

- O QUÊ!!!!???? Ah, seu pirralho filho da p... hã, bem...tudo bem, acho que descolo uma boquinha num vôo militar, tem indo pra lá praticamente todo dia. O carro é seu, mas vê se não vai apostar corrida ou coisa do tipo!

- [Sorriso vitorioso] Valeu! E o senhor vai deixar uma grana, né, velhão?

- Vou sim... você tem que comprar as tortas né? Também tem que manter a casa... a empregada vai cuidar de tudo, você só tem que fazer as compras enquanto eu estiver fora, ok?

- Tranqüilo. Ainda mais com a caranga, né?

Essas lembranças eram nítidas, embora um pouco confusas, na sua mente afetada pela erva, enquanto a vitrolinha do balacobaco tocava Purple Haze a todo volume no apartamento. É claro que toda a grana que o pai deu para as tortas virou maconha, mas as vizinhas implicantes não ficaram na mão, de jeito nenhum. Cada uma recebeu um bolo de chocolate especial, feito com erva, àquela hora deveriam estar viajando longe. Ele e a Doris, a empregada gostosa e pra frente da casa, já há muito tempo haviam descoberto o ponto certo da iguaria, temperado o suficiente para causar a lombra, mas suave para não revirar o estômago.

Ah! - pensava Arquibaldo com carinho - como a Doris era gostosa e vagabunda! Àquela hora certamente estava em um sambão em Taguatinga, e algum pé-rapado de lá se daria bem naquela noite. Mas tudo bem: ele tinha a semana inteira para curtir a morena, ainda mais sem o velho em casa...mas que otário! Nunca tirou nem uma lasquinha! A lembrança era nítida, tudo o que a lombra fazia era acrescentar um eco desagradável às palavras do pai:

- Nada de se envolver com a criadagem, filhote. É encrenca na certa. Desde o tempo da abolição que esses crioulos andam muito abusados. Além disso, sua mãe ficaria horrorizada.

- Podeixar, velhão. Pesquei o recado.

Arquibaldo nunca tinha entendido muito bem a diferença que seu pai tanto via entre preto e branco. Na primeira semana tinha tido um entendimento bem bacana com a mina, ela não era abusada, muito pelo contrário. Era bastante solícita e fazia tudo, tudo mesmo, que ele pedia, com um sorriso no rosto. Boazuda que só ela, apenas por existir era a prova viva para invalidar qualquer teoria de raça superior dos nazistas.

- Grande Doris! Ah, Doris!

- Doris? É a sua namorada?

Aquela voz linda, maravilhosa, lisérgica...vinha de algum lugar. De onde, de onde... e então ele viu, em meio a fumaça que empesteava a casa, aquela gata. Gamou na hora. Era uma gatinha muito linda...ela sentou na almofada ao lado dele, pediu um trago e começou a fumar junto.

- Qual seu nome, gatinha?

- Gisele, e o seu?

- Ah, meu nome é muito estranho. Graças a meu pai milico, que quis homenagear meu bisavô, que foi desmembrado por índios guaranis na Guerra do Paraguai. Idiota, né? A turma me chama de Bola.

- Bola? Mas pô...você é o maior magrelo... sequinho.

- Vai entender, né? Cabeça de chapado é assim mesmo...apelido mais sem nexo...

- Legal, Bola, legal... posso ficar fumando aqui contigo?

- Ô se pode, gatinha, ô se pode. Qual o seu nome mesmo?

- Gisele.

- Legal, Gisele, legal. Olha só, tem mais erva lá no meu quarto. Bora fumar lá?

- Bora...

- Vamo lá então, do balacobaco isso aí...