segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Contos do Commercio - INCOMPATIBILIDADES

No quintal do Seu Agenor havia uma piscina olímpica, cinqüenta metros por vinte e cinco, com dez raias. Era um pouco afastada da área de diversão da casa, onde havia uma outra destinada ao lazer, de forma amebóide, com cascata e revestida de pastilhas coloridas. Aquela era a “séria”, como o Seu Agenor costumava se referir, destinada ao treino diário do seu dono, que sempre, às oito horas da manhã, nadava dois mil e quinhentos metros.

Na época em que ele mesmo atravessava suas mercadorias pelo Rio Paraguai, aprendeu a importância de nadar bem, e sempre treinou do jeito que desse, tanto fosse no rio ou em alguma piscina comunitária, até enriquecer e não ter mais que nadar na mesma água que paraguaios, o que sempre o incomodou muito. Hoje esse condicionamento físico não era mais necessário, ele dificilmente conduzia pessoalmente alguma passagem de mercadorias, com exceção das travessias de armamentos, relativamente raras, em que os compradores exigiam sua presença pessoal para fechar o negócio. Sempre dizia:

- Bem, Romualdo, numa venda de armas, se alguma coisa der errado não tem natação que dê conta de salvar o couro da gente. Mas é um hábito saudável, né? Melhor manter.

Após construir a piscina, ele passou a se exercitar sob a supervisão de um professor de natação, contratado para lhe dar orientações como personal trainer. Depois teve de dispensá-lo. Além de, às vezes, esquecer as regras vigentes na propriedade e expressar-se em espanhol, ele insistia em corrigir as pernadas do nado borboleta do Sr. Agenor:

- Não é só perna, seu Agenor, tem que movimentar a cintura, subir e descer a bunda um pouco!

- Como é, moleque?!!

- A bunda, seu Agenor, a bunda. Ela é essencial para o nado borboleta, tem que subir e descer em um movimento rápido, amplo e initerrupto. O señor tem muita força e resistência, especialmente considerando sua idade. Mas tem que desenvolver mais a técnica.

- Que seja! Mas o que tem isso a ver com minha bunda?! Com minha bunda ninguém mexe, porra!

- Señor! Solo quiero ayudar!

- NÃO FALE ESPANHOL NA MINHA CASA, SEU FILHO DA PUTA!!! Odeio essa maldita língua, podemos até estar nesse país de merda onde se fala esse idioma de maricas, mas dentro dos muros dessa propriedade só se fala português, entendido?!!

- Sim, senhor, me desculpe, escapou sem querer...

- Desculpa o caralho!!! Eu trouxe todos os meus empregados do Brasil para não ter que ouvir essa maldita língua aqui dentro! Achei que poderia abrir uma exceção para o professor do natação que só viria uma hora por dia, já que a maior parte do tempo eu estaria embaixo d’água e com protetor de ouvido, mas começo a achar que me enganei! Ainda fosse guarani eu engolia, mas espanhol não! Posso ser obrigado a falar essa merda quando saio daqui, mas no interior dos muros dessa propriedade, a língua oficial é a portuguesa!

- Claro, senhor, mas peço sua compreensão, afinal eu nasci aqui...

- O que não conta a seu favor! Quer saber o que mais?! Eu te contratei porque você sabe falar a minha língua, mas se não está a fim, pode cair o fora!

- Que é isso, señor...

- “Señor” é o caralho!!! É “SENHOR”, tá me ouvindo, “SENHOR”! A pronúncia muda completamente, porra! Agora some daqui, SOME, SOME!!!!

- Mas, hã, senhor...eu tenho família, esse emprego é muito importante para mim...

- Sua família pode ficar sem você, também, se preferir – disse Romualdo, que veio muito rapidamente após ouvir os gritos do seu chefe – é só não obedecer o Sr. Agenor. O que ele acabou de dizer mesmo?

- Hã... “some”?

- Então você vai sumir. Te deixo decidir como, vai embora ou não?

- É... t-tô indo já...

- Procura o Gervásio na saída, ele te paga, ok?

- Ma-magina, n-nem pr-precisa...

- ISSO NÃO FOI UMA SUGESTÃO SEU FILHO DA PUTA!!! – gritou o Seu Agenor ainda na piscina – NÃO QUERO NINGUÉM DIZENDO POR AÍ QUE EU SOU CALOTEIRO!!! SE NÃO PEGAR ESSA MERDA DE GRANA, MANDO O ROMUALDO TE PROCURAR E ENFIAR TUDO NO TEU CU, ATÉ O ÚLTIMO CENTAVO!!!

- É, e eu não quero ter que fazer isso, ok? Anti-higiênico pra cacete, mas se o chefe mandar é na hora...então seja um bom subdesenvolvidozinho de merda, pegue seus trocados com o Gervásio, suma e nunca mais passe perto daqui. Índio fodido! Sai daqui antes que eu perca a paciência e te abra os cornos com um tiro, xô, XÔ, XÔÔÔ!!!

Um homem adulto chorando é sempre uma cena deprimente. Quando se trata de um jovem musculoso, beira o tragicômico. Mas foi assim que o rapaz, Rodrigo, humilhado, foi bater na porta da casa e procurar o mordomo, Gervásio, que ouviu a história, meio contada, meio pranteada, do pobre professor recém-demitido.

- Sssssssshi...shii...passou, rapaz, passou, pronto, pronto...acabou. Vou preparar seu cheque, vou acrescentar um valor a título de seguro-desemprego e FGTS. Aqui não tem dessas coisas, mas a gente não quer que você passe dificuldade, né?

- Chuif...obrigado...mas isso não vai causar problemas com o seu chefe?

- Pelo contrário. Ele faz questão que tratemos os empregados segundo as leis brasileiras, mesmo que elas não valham aqui. Ele sempre diz que não é por estarmos em um país de selvagens que devemos agir como animais.

- Putz...

- Aqui o cheque, assina o recibo, por favor.

- Tá...

- Olha só, falo isso pro seu bem: é muito importante que você não apareça mais aqui de novo, ok? O Sr. Agenor é um bom homem, mas às vezes implica com as pessoas.

- Hum, percebi. Não passo mais nem nessa rua, gosto de viver.

- Que bom que entendeu. Adeus, amigo, e tenha uma boa vida.

- Adiós! Gracias!

O barulho do tiro ecoou em toda a casa. A cabeça do rapaz estourou em mil pedaços, e, em menos de um segundo, a cidade de Assunção, no Paraguai, passou a ter um professor de educação física a menos. A maioria dos empregados estava presente. Um gritou, outra desmaiou, os demais apenas quedaram-se estarrecidos, vendo o cérebro do rapaz escorrer lentamente pelo chão, o pouco que restou dele, na verdade. A maior parte se espalhou pela sala da casa de empregados com o tiro, a arma era calibre 50. Uma bala bem grande.

- Puta, Romualdo, mas que sujeira! Tinha que fazer isso aqui dentro? Por sinal, não é o seu estilo liberar o sujeito, só para depois passar fogo! O que diabos houve, afinal de contas? – perguntou Gervásio, em um misto de susto e raiva.

- Eu não podia perder essa oportunidade, com todos aqui, de reforçar, com um bom exemplo, a recomendação de que NÃO SE FALE EM ESPANHOL, EM HIPÓTESE ALGUMA, NEM NO TELEFONE, DENTRO DESSA PROPRIEDADE, PORRA!!!! É ORDEM DIRETA DO SENHOR AGENOR!!! TODOS ENTENDERAM, CARALHO???

- S-sim, s-senhor! – disseram, quase em coro, os empregados.

- Ótimo. Agora tratem de limpar isso aqui. Gervársio, livre-se do corpo.

- Ok, Romualdo. Até a hora do almoço, então.

-Até.

APÓS O ALMOÇO...

- Aprovada sua atitude, Romualdo, senso de oportunidade, realmente, é tudo. Você captou a atitude certa para o momento, se você deixa passar aquela despedida em espanhol, na frente do todos os empregados, daqui a pouco eles tão vendendo drogas na frente aqui de casa. Não pode dar mole. Agora, teve um lance que me incomodou.

- Que foi, chefe?

- Em determinado momento da conversa, você se referiu pejorativamente à ascendência indígena do babaca. Pois bem, você sabe que não tolero expressões de racismo de qualquer espécie, espero que isso não se repita mais. Afinal, não conseguiremos construir a nova humanidade do século XXI, com fraternidade e concórdia, se continuarmos a alimentar esses preconceitos retrógrados, ok?

- Ih, é mesmo, chefe, mal aí.

- Não esquenta, foi só um toque. Além disso, o moleque tava meio abusado mesmo, ficava dizendo o que eu tenho ou não que fazer com a minha bunda. Na minha bunda ninguém mexe, porra!!

- Com certeza. Chefe, valeu, vou nessa. Tenho uns pepinos para resolver, lances do casório.

- Vai lá, cara. Segura mesmo essa menina, vou com a cara dela, acho que você vai ser feliz!

- Deus te ouça, chefe, até mais tarde!

- Até mais tarde, Romualdo.

Depois, Gervásio mandou trazer um professor do Brasil, mas também não deu certo. Ele inventou de tentar se engraçar com a esposa do Seu Agenor, e além de não ter conseguido comê-la, teve uma morte lenta e meticulosamente dolorosa. Atualmente, o treino na piscina é acompanhado apenas pelos seguranças da propriedade, a partir de seus postos elevados. E o velho contrabandista continua nadando borboleta sem movimentar a bunda.