terça-feira, 18 de novembro de 2003


“Nesse lugar, enchem sua cabeça de merda e mandam você ser igual à todo mundo. Eles acham que a gente não percebe, mas eu saco tudo.”

Dane McGowan, o Jack Frost de Os Invisíveis, obra de Grant Morrison. Por ocasião dessa fala, o personagem põe fogo em sua escola e mata seu professor de História.

O Gory, do Abobra, anda usando seu blog para questionar uma das grandes sacanagens do mundo: o sistema educacional. Ele tem muita razão em tudo que está dizendo: as crianças são enviadas para prisões, obrigadas a aprender um monte de imbecilidades que algum filho de uma puta decidiu que deveriam estar presentes em suas mentes. Não duvidaria que essas merdas todas fossem só para desviar a atenção do menino das as outras grandes escrotices: para destruir sua consciência crítica e para transformá-lo numa engrenagem de merda para o sistema escroto em que estamos inseridos (e que “insere” tudo o que quer na gente, sem camisinha ou KY).

Caso paremos e pensemos direitinho, a escola é um microcosmo de todas as escrotices que encontramos através da vida. Pelo menos para mim foi. Foi na escola que aprendi o que era uma cerca, antes dela tinha vivido embaixo dos pilotis do meu prédio, com todo um mundo em volta à minha disposição. Ali, pela primeira vez, fui obrigado a me relacionar com outras crianças independentemente de gostar delas ou não. Com as crianças de que não gostava, aprendi que não importa muito o tipo de pessoa que você é, desde que tenha brinquedos e tênis caros. Não entendo de psicologia, mas lembro bem que absorvia aqueles valores sem qualquer tipo de questionamento: eu também tinha que ter um kichute, um carro de controle remoto, uma blusa da seleção...era lógico, se meus colegas tinham, eu também teria que ter, não é mesmo?

Nunca aprendi esse tipo de merda em casa. Quando comecei a aprender na escola, minha mãe teve muito trabalho para tentar ( e muitas vezes não conseguir ) deconstruir aqueles valores escrotos; por outro lado, entendia ( ao contrário de mim ) a minha necessidade de atender àquelas merdas para me inserir no grupo a que pertencia, e trabalhava dobrado para poder me dar algumas das bugigangas que pedia. Por outro, conversava comigo para tentar tirar da minha cabeça aquele monte de babaquices.

Alguns anos foram necessários, contudo, para que eu começasse a questionar por que eu deveria aprender algumas das bobagens que me ensinavam, talvez porque eu as aprendesse sem muito esforço. Ou talvez porque meu pai me explicava de forma extremamente sincera e objetiva o porquê de eu estar na escola: me preparar para entrar em uma universidade. Ele nunca tentou justificar de outra forma as porras que eu tinha que aprender, o motivo era esse, e estava mais do que bom. Dessa forma, eu estava já em clima de vestibular desde molequinho, quer dizer, até que eu não me preocupava tanto em estudar ou coisa do tipo, mas não me revoltava contra a idéia de ter que ir à escola. Assim, eu já estava perfeitamente atrelado à escrotice desse sistema.

Aprendi porras como números complexos, funcionamento de células, sistema social do Antigo Egito, movimentação de placas tectônicas...enquanto eu estava enfurnado em uma droga de sala quente ouvido uma porrada de blábláblá sobre esse monte de assuntos de “extrema relevância”, o mundo não estava parado: se fabricavam balas, bombas e caças invisíveis ao radar: tudo feito por um monte de gente como eu, que havia passado os melhores anos de suas vidas enfurnados em salas de aula escrotas, estudando diferenças entre vírus e protozoários. Essas pessoas, como eu, tinham adquirido valores ainda mais interessantes na adolescência: aprenderam que não bastava ter uma blusa da seleção, ela tinha que ser oficial; não bastava ter uma bicicleta, ela tinha que ter não sei quantas mil marchas e ser importada; não bastava descolar uma namorada, ela tinha que ter o m visual que a galera achasse o padrão de beleza, ou o cara virava motivo de chacota.

Claro, nessa época, já tinha aprendido uma expressão que teve um desempenho muito importante em minha formação: FODA-SE. Como diria o indiano esquisito de Matrix Revolutions, “foda-se” é uma palavra que implica em toda uma série de interconexões e conseqüências. Aprendi essa com a minha mãe, que já havia dito “foda-se”, à sua própria maneira, para o governo e para seus chefes, no movimento sindical. “Foda-se” foi muito importante para a construção de minha consciência. Embora tenha aprendido a dizer “foda-se” para Company, Pakalolo, Hugo Boss, música baiana e todas as merdas que tentavam me fazer engolir na adolescência, nunca tive as caras de dizer “foda-se” para a escola.

Sempre fui um moleque obediente nesse sentido, e, por incrível que pareça, não me arrependo. Eu sabia que teria que ser um pivetinho comportado e respeitador da instituição escolar para realizar aquilo com que sonhava desde os 14 anos: ser arquiteto. Sabia que teria que gastar um terço da minha vida apenas para começar a viver esse desejo, e como toda a minha geração, enfrentei um dos processos mais destrutivos que existem para a personalidade de qualquer moleque: a porra do vestibular. Durante os melhores anos para se fazer esportes e para trepar, ou seja, o tempo entre os 16 e 20 anos, tive que abrir mão de muita natação e possíveis fodas para estudar. Fiz quatro vestibulares para entrar na Universidade. Hoje, com 26 anos, percebo que passei pelo menos 15 estudando um monte de inutilidades. Percebo que gastei um tempo que poderia ter sido muito melhor aplicado se o sistema educacional pudesse me permitir gastá-lo em prol de minha própria felicidade. Eu sabia o que queria da vida desde os 14 anos! Porque tive que esperar até os 20 para começar a aprender? Por que tive que estudar mitoses, meioses, sistema digestivo dos artrópodes e coisas do tipo? Por que tive que fazer segundo grau, cursinho, passar dias inteiros em bibliotecas estudando tanta imbecilidade? Quem ganha com isso?

Essas perguntas eu deixo no ar. Só digo que, se hoje tenho, em minha personalidade, valores distorcidos e desgradáveis, naturalmente tenho que fazer um mea culpa e tentar melhorar, mas também me sinto à vontade para colocar um pouco da culpa em todo esse processo escroto. Quando vejo garotos de 15 anos indo à escola de manhã, fazendo cursinho à tarde e devorando livros à noite para a merda do PAS; quando vejo crianças de sete anos já aprendendo aquilo que estudei com dez; quando passo na frente de um cursinho e vejo tantas meninas bonitas entrando para ouvir um professor ensinando merda, em vez de ouvir minha voz falando sacanagenzinhas em seu ouvido; quando vejo um garoto de dezessete anos aprendendo a fazer equações de segundo grau em vez de aprender violão; então eu me pergunto se quero um dia ter filhos. Sei que, caso eu os tenha, terei que fazer como fez o meu pai: jogar na real e explicar porque eu, apesar de amá-lo tanto e exatamente por isso, devo encarcerá-lo durante a metade de sua vida.