sexta-feira, 20 de junho de 2008

Meireles é muitos - Arco 1- Contracultura, grana e poder

Parte 4 - Sim Senhor!



Muito bacana o fusquinha que o velho comprou pra ele, vermelhão 68, ainda tava tinindo de novo. Menos de um mês, e o banco de trás da caranga já tinha conhecido a bunda de umas oito minas, ele estava mesmo disposto a quebrar todos os recordes brasileiros de foda jamais registrados. Pena que o carro não era conversível, se fosse, a conversa mole de “nosso amor tá escrito nas estrelas do céu que brilham só para nós bêibi” ia funcionar ainda mais rápido. Arquibaldo convenceu o velho a molhar a mão do cara do Detran pra descolar a porra da carteira pra ele sem maiores frescuras, nem fudendo que ia fazer psicotécnico e provinha de viado. Com o tanto de erva que ele tinha fumado nos últimos anos, era capaz dele chegar no psicotécnico e tentar enfiar o cilindro circular no buraco quadrado, que nem naqueles testes com macacos...

Rindo sozinho com essa cena peculiar em mente, ele entrou em casa com um extremo bom humor, depois da aula e uns três beises com a galera. Seria capaz de devorar um cavalo, de tanta larica. Passou pela porta e gritou pela Doris. O soco atingiu seu rosto em cheio, com toda a força, e Arquibaldo caiu com tudo no chão. Ouviu o grito do pai vindo de cima:

- Seu merdinha desgraçado!!! Você engravidou a filha do General Horus!!!

- Huh...General quem... mas que raio de nome é...

Foi interrompido por um chute forte bem na boca do estômago, se tivesse algo lá dentro, ele teria vomitado. Em vez disso, ficou lá, com uma bile esverdeada escorrendo pela boca, misturada com um pouco de sangue. Não sabia que o velho tinha aquela força toda. Ouviu uma voz rouca e sinistra no ambiente.

- Achei que a vida mansa ia te tirar o tino pro serviço, Meireles. Tenho que admitir que eu estava errado.

- Errado nada, general. É que, graças a esse imbecil, a minha vida não tem sido nada mansa nos últimos tempos. Nada mesmo!!!

E enfiou o sapato entre as pernas de Arquibaldo. O rapaz urrou de dor.

- Papai, manda ele parar!!! Por favor, tadinho do Bola!!! – gritou a linda Gisele, desesperada.

- É, Meireles, chega. Não vamos poder esperar muito, e o moleque não pode ter marcas de porrada, vão estragar as fotos.

- Sim, senhor. – Meireles aquiesceu respeitosamente. – De pé, moleque. Agora.

O instinto primitivo do medo produziu obediência imediata, o rapaz se esforçou verdadeiramente para levantar. Mas não conseguiu. A dor não permitia, como doía, como doía. O General Horus levantou do sofá preto de couro, dirigiu-se até Arquibaldo e acocorou-se do seu lado, falando perto do seu ouvido, porém alto, sem cochichar.

- Ouviu isso, rapaz? “Sim, senhor”, foi o que seu pai disse. Isso é música para meus ouvidos, sabia? É sim... porque, meu rapaz, “sim, senhor” não é apenas uma simples imprecação da língua, não mesmo. Trata-se de um autêntico marco civilizatório, é a garantia da evolução do nosso país. Porque o mundo é assim, os de cima comandam, os de baixo obedecem, e a produção acontece. Tudo muito disciplinado aqui, o “sim senhor” bem dito, explanado com convicção, é o que garante a ordem e o progresso. O teu pai é um bom soldado, sabia? Milico de verdade, durão, mas sem ser casca grossa, sem perder a postura... não tenho tantas esperanças em relação a ti, e acho que nem ele. Mas estou certo que podemos transformá-lo num trabalhador disciplinado, ah, podemos sim senhor. Sim senhor! Meireles, teremos que dar um jeito nesse cabelo aqui. É mais longo que o da minha filha, ó deus do céu. Assim os convidados não vão saber quem é a noiva, hahahahaha...

- Será providenciado, senhor.

Noiva. Aquela palavra tocou a tecla do mais puro terror dentro da mente de Arquibaldo. A surra não seria nada perto disso, ou cortar os cabelos, ou virar contador. Achou forças dentro de si que não sabia existirem. Arrastou-se até uma poltrona. Sentou-se e disse, sentindo o sangue na boca:

- Tá. Bora conversar.

- Conversar? Acho que você não está entendendo, rapaz. – disse o general, ríspido.

- Pera, eu já saquei tudo. Vamo lá. Meu velho tá duro, andei dando um preju brabo pra ele, então a gente resolve. A gente vende o fusca, faz a cirurgia e tira o pirralho. Resolve na manha. Cabou.

- Pirou, seu porra? Tá achando que minha filha é o que, uma vaca prenha? Tu vai assumir tuas responsabilidades, ninguém vai enfiar porra nenhuma de tesoura no útero da minha filha não! Somos uma família católica! Seu merda, te prepara pro casório.

- Peraí só um minuto!!! – agora Arquibaldo gritava com raiva – a Gi é legal, mas foram só umas fodas! Passou! Ela nem era virgem quando a gente transou!!! Nem fudendo que vou casar com ela!

Gisele, sentada do lado do pai no sofá, começa a chorar sem parar. Arquibaldo tentou apaziguar.

- Pô Gi! Não é nada contra ti, gatinha, você é uma mina legal. Mas eu não tô preparado para casar, simplesmente não tô, sacou? Sou muito novo pô, quero curtir muito ainda.

- Meireles – diz o general, com malícia na voz – acho que não vai ter jeito. Vou ter que entregar esse seu moleque.

- É – responde Meireles sorrindo – eu sei que foi errado esconder que ele é comunista, mas é meu filho, né? O senhor deve entender que se tratava do desespero de um pai.

- Você é comunista, Bola? Nunca imaginaria, agora estou com medo de você – diz Gisele espantada – papai, você quer me casar com um comunista?

- [carinhoso] Claro que não minha, filha. Você tem apenas quinze anos, não merece um destino desses. Se pelo menos ele tivesse um emprego, te restaria a pensão. Mas ser viúva de um comunista duro não é sina para você.

- Viúva? Comunista? Que conversa é essa – grita Arquibaldo em desespero – nunca fui comunista!!!

- E esses livros que eu achei nas suas coisas, moleque – diz o pai, brandindo exemplares do Manifesto Comunista e d’O Capital, de Karl Marx – o que me diz deles?

Arquibaldo nunca havia visto aqueles livros na vida. Aliás, nem gostava de ler, o negócio dele era pau na buceta, porra, não ler livro de comuna FDP e CDF.

- Mas que porra é essa?

- Ora, filho, estou aqui tentando convencer o General Horus a não encaminhá-lo a uma delegacia do DOPS. É um lugar muito duro, em todos os sentidos. Muitos não resistem. Um magricela como você, em especial eu tenho sérias dúvidas. O problema é que, por mais que eu tente convencer o General, a decisão final é dele, é meu superior. É importante que você colabore, é importante que todos colaborem, que o país inteiro colabore, nem que seja na marra. Ajude-me a convencê-lo, meu filho, ajude-me a convencê-lo que você não é um maldito subversivo. Que você é um bom rapaz, sempre disposto a fazer a coisa certa.

Agora já deu, pensou Arquibaldo. Hora da cartada final. Era hora do pai acabar com aquela merda nazista e passar para o lado dele, a ajudá-lo. E forçou a voz mais ameaçadora que poderia:

- Velho, por favor. A pressão está demais. Desse jeito, vou acabar tendo que revelar aquele seu segredinho sujo. Não me deixe sozinho, converse com o General. Convença-o a encontrar outra solução. Senão já sabe.

Calado, Meireles apenas olhou nos olhos do General Horus, que disse, de forma calma e incisiva.

- Ah, meu rapaz! Que pessoa imatura você é! Quando cheguei aqui, seu pai me contou a forma cruel com que você o vem chantageando. Que vergonha, moço. O que sua mãe pensaria disso?

- Ela jamais ficaria casada com uma bichona, se soubesse, General. E quanto ao senhor, quer passar a ter um viado freqüentando a sua casa? Acha isso normal?

O general ficou calado um tempo, seguido por todos. Enfiou a mão no paletó, puxou uma carteira de cigarros, pôs um na boca.

- Tem fogo, Meireles?

- Sim, senhor. – puxou um isqueiro do bolso, e acendeu o cigarro do general.

- Filho, seu pai não é nada disso. Eu fui colega dele na escola de cadetes, dormíamos no mesmo alojamento. O que acontecia ali era algo bastante normal entre internados, não se trata de ser bicha ou não. A forma como você coloca as coisas demonstra um grande desconhecimento, no meio militar não vemos as coisas da mesma forma que vocês, civis. Os conceitos são diferentes, as vivências são únicas, não se pode julgar situações diferentes com os mesmos critérios. A propósito, você deve passar a considerar esse assunto como Segredo de Estado, como questão de Segurança Nacional.

- Segurança nacional? O que o rabo do velho tem a ver com a segurança nacional?

- Você é civil, não espero que entenda o porquê. Mas entenda as conseqüências, rapaz: se tocar nesse assunto de novo, teremos que encaminhá-lo para uma prisão militar. E elas não são nada bonitas, eu te garanto. Não são feitas por nenhuma porra de arquiteto comunista, rapaz, foram feitas por militares muito machos, como teu velho. Você deveria ter orgulho de ser filho dele. Ele é um especialista em prisões, sabia? As que ele fez são à prova de fuga, é um engenheiro militar de primeira linha. Sem falar nos aparelhos que ele desenhou! Que eficiência! Não tem subversivo que agüente mais que algumas horas na “cadeira sucuri de aço”, nem no “pau-de-arara eletrificado turbo”, eles sempre abrem o bico rapidinho. Você gostaria de conhecer as criações de seu pai, Arquibaldo? Estou certo que seria muito instrutivo.

Arquibaldo pensou. Como nunca antes havia pensado na sua vida. Havia uma possibilidade real daqueles loucos estarem falando sério. De não ser blefe. De arrancarem seu pau com um alicate. De enfiarem uma chave de boca na sua bunda. Eles faziam esse tipo de coisa, ele sabia. E, de uma forma bizarra, conhecia seu pai o suficiente para saber que ele seria capaz de desenhar máquinas de tortura, sim, se acreditasse que aquilo seria bom para a pátria. O pai era um viciado em trabalho, e muito metódico em tudo. Se ele desenhou máquinas desse tipo, elas certamente funcionariam muito bem. Ficou aterrorizado. Se ele gostaria de conhecê-las? Não havia outra resposta possível:

- ...não.

- A propósito, belo nome o seu... Arquibaldo Meireles! Muito apropriado para um homem sério, sabia? Vai ficar bem em minha filha, Gisele Horus Meireles, veja só!

- [puto] É Arquibaldo da Silva e Souza Meireles, na verdade. Arquibaldo era o nome do meu bisavô...

- ...que morreu heroicamente na Guerra do Paraguai. É, seu pai já me contou, em outra ocasião. É um nome para se ter orgulho, rapaz. Muito orgulho mesmo. De qualquer forma, acho que estamos entendidos?

- ...sim.

- Esplêndido. Naturalmente, como pai da noiva, terei o maior prazer em patrocinar todas as despesas do casamento e da festa, que, aliás, será já no próximo mês. Afinal, não quero minha filha casando com a barriga saliente. Prepare o smoking, Meireles!

- Certamente, senhor. A propósito, devo acrescentar que, apesar das circunstâncias não serem muito convencionais, estou muito feliz com a união de nossas famílias.

- Falou como um autêntico cavalheiro! Meireles, compartilho dos seus sentimentos, mas não sejamos maricas, certo? Mantenhamos o decoro! Somos infantes, certo? Sujeitos durões! Agora estou indo, vou sair com a mulher e a menina para tratar os detalhes do casório e da festa. Te mantenho informado.

- Sim, senhor.

Meireles lembrou que Horus era bem durão mesmo. Em todos os sentidos. Mas aquilo tudo era passado, e ele teria que esperar até depois do casório para ir ao Rio, encontrar o Tonhão de novo e encarar toda a dureza do mundo. Se largasse o moleque sozinho, ele poderia aprontar alguma outra besteira.

- Bola! – disse Gisele já na porta – me liga, tá?

- ...tá, Gi. Ligo sim.

Observou, sentado na poltrona, sangrando pela boca, os dois irem embora, se despedindo com sorrisos. O mundo parecia rodar em torno de Arquibaldo, ele tinha perdido o chão. Mal conseguia andar.

- Vamos ao barbeiro agora, moleque. Temos que te comprar umas roupas novas também. Esses trapos hippies não caem bem a um sujeito sério. Você dirige. Vamos, rápido.

- Tá, velho, tô indo.

Meireles não disse nada, apenas encarou o filho fixamente, e permaneceu parado, com as mãos na cintura.

- Quero dizer... hã ...sim, senhor.